Fernando Pessoa (1888-1935) é considerado pelos estudiosos da literatura um dos maiores poetas portugueses de todos os tempos, senão o maior. Só Camões disputa com ele o primeiro lugar. E o próprio Pessoa sabia disso. Em artigo publicado em 1912, profetizou a vinda de um “Super-Camões” – ao que tudo indica, ele mesmo.
Publicou apenas um livro, Mensagem, um ano antes da sua morte. Os demais textos que conhecemos, em prosa e verso, ou foram publicados em jornais e revistas da época ou postumamente.
Pessoa deixou uma arca repleta de folhas manuscritas, que há décadas é alvo de pesquisas. Se hoje existe um Livro do Desassossego, por exemplo, é graças ao trabalho de pesquisadores da obra pessoana.
Uma das marcas de Pessoa são os heterônimos. Para alguém que se recusava a viver a estreiteza de um único eu, era preciso criar outros. Assim, os heterônimos são “outros eus”, personagens com nome, biografia, personalidade e, como são escritores, estilo próprio. Cada heterônimo escreve de um jeito. Tem uma forma específica de pensar o mundo.
É sempre interessante comparar a produção ortônima (do Pessoa "ele-mesmo") com a dos heterônimos. Qual é o que mais se aproxima e qual o que mais se afasta do Pessoa em carne e osso?
Numa obra tão rica e variada, claro que escolher apenas 12 poemas não é uma tarefa fácil. Que fossem 15, 20, 50, já seria bem difícil, pois muita coisa boa tem que ficar de fora.
Talvez seja possível produzir algumas listas de 12 poemas fundamentais do escritor português. Buscou-se, nesse breve elenco, traçar um panorama de sua obra poética. Por isso há poemas representativos da produção ortônima e de cada um dos heterônimos.
Vamos lá.
Poesia Ortônima (Pessoa "ele-mesmo")
De Mensagem, o único livro publicado em vida, dois poemas foram escolhidos. “Mar Português”, pelos versos célebres e pelo olhar para o passado. “Nevoeiro”, por seu caráter messiânico e por apontar para o futuro. São dois poemas bem representativos do teor do livro: ao mesmo tempo, voltado ao passado e ao futuro da nação portuguesa.
1 – Mar Português
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
2 – Nevoeiro
Nem rei nem lei, nem paz nem guerra,
Define com perfil e ser
Este fulgor baço da terra
Que é Portugal a entristecer —
Brilho sem luz e sem arder
Como o que o fogo-fátuo encerra.Ninguém sabe que coisa quer.
Ninguém conhece que alma tem,
Nem o que é mal nem o que é bem.
(Que ânsia distante perto chora?)
Tudo é incerto e derradeiro.
Tudo é disperso, nada é inteiro.
Ó Portugal, hoje és nevoeiro...É a hora!
“Autopsicografia” tem uma das estrofes mais declamadas da poesia de língua portuguesa. É um poema central na obra pessoana porque traduz sua “poética do fingimento”. Aqui, o “eu lírico” transforma-se numa espécie de ator.
3 – Autopsicografia
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.E os que leem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
O próximo poema anuncia os heterônimos já no primeiro verso. Trata-se de um poema fundamental para entrar no universo pessoano, marcado pela multiplicidade e pela inquietação existencial.
4 - Não sei quantas almas tenho.
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: «Fui eu?»
Deus sabe, porque o escreveu.
Poesia Heterônima (as personalidades literárias)
Alberto Caeiro
Na ficção pessoana, Alberto Caeiro nasceu em Lisboa, em 1889, e morreu de tuberculose em 1915. O “Mestre”, como é chamado pelos demais heterônimos, sempre viveu no campo. Os poemas V e IX de O Guardador de Rebanhos são bons exemplos da sua reação ao racionalismo e à metafísica. Ricardo Reis, outro heterônimo, define Caeiro como um “poeta objetivo”.
Devido ao tamanho, só foram transcritas as três primeiras estrofes do poema V. Mas, caso queira ler o poema na íntegra, saiba que a obra completa de Fernando Pessoa encontra-se hoje digitalizada no Arquivo Pessoa. Vale a pena conferir.
5 – Poema V de O Guardador de Rebanhos
O que penso eu do Mundo?
Sei lá o que penso do Mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das coisas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
Não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das coisas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
[...]
6 – Poema IX de O Guardador de Rebanhos
Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Ricardo Reis
Ricardo Reis nasceu no Porto em 1887. Ou teria sido em 1914? Ou teria sido em Lisboa? O próprio Pessoa se contradiz.
Era médico, discípulo de Caeiro, e viveu no Brasil a partir de 1919. Monárquico, foi expatriado. Segundo a pesquisadora Manuela Parreira da Silva, é um heterônimo que impõe a Pessoa um maior distanciamento.
A poesia de Reis é uma reação ao romantismo e aos excessos do modernismo. Influenciado pela poesia clássica, escreve odes. Pessoa o define como um “Horácio grego que escreve em português”.
Os dois poemas representam aspectos fundamentais da poesia de Reis. A primeira ode transpira carpe diem, de influência clássica. Carpe diem é uma expressão latina cuja aparição na literatura se deve a Horácio (65 a. C. - 8 a. C.), um dos maiores poetas da Roma Antiga. Faz referência à passagem do tempo, à brevidade da vida. Pode ser traduzida por "aproveite o momento".
Já a segunda ode de Ricardo Reis exprime o fardo da vida, o fatalismo da condição humana.
7 – Poema sem título que compõe as Odes de Ricardo Reis
Uns, com os olhos postos no passado,
Veem o que não veem; outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro, veem
O que não pode ver-se.Porque tão longe ir pôr o que está perto —
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
O dia, porque és ele.
8 – Poema sem título que compõe as Odes de Ricardo Reis
Sob a leve tutela
De deuses descuidosos,
Quero gastar as concedidas horas
Desta fadada vida.Nada podendo contra
O ser que me fizeram,
Desejo ao menos que me haja o Fado
Dado a paz por destino.Da verdade não quero
Mais que a vida; que os deuses
Dão vida e não verdade, nem talvez
Saibam qual a verdade.
Álvaro de Campos
Segundo a pesquisadora Teresa Rita Lopes, Álvaro de Campos era mais que um heterônimo. Infiltrando-se na realidade, ele “aparecia” à Ofélia, namorada de Pessoa. Falava com ela. Enviava-lhe cartas.
Nascido em 1890, na pequena Tavira, foi estudar engenharia na Escócia, mas não completou o curso. Viajou ao Oriente antes de voltar a Portugal. Não gostava muito de trabalhar. No poema “Saudação a Walt Whitman”, define-se como “pretensioso e amoral”.
Sua poesia é marcada pela linguagem torrencial, anárquica. Não espere encontrar em Campos qualquer vestígio de métrica. É o mais modernista dos heterônimos. Segundo Ricardo Reis, seus poemas são um “extravasar de emoção”.
Ficam de fora desta breve lista grandes poemas. Mas com certeza os quatro escolhidos são uma boa amostra da qualidade da poesia desse heterônimo. Afinal, impossível conhecer Álvaro de Campos sem passar por "Tabacaria", "Ode Triunfal", "Ode Marítima" e "Passagem das Horas".
Novamente, devido ao tamanho dos textos, optou-se por transcrever só as estrofes iniciais.
9 – Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
[...]
Assista ao saudoso Antônio Abujamra declamando "Tabacaria", no programa Provocações. É de arrepiar.
10 – Ode Triunfal
À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!
Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um acesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.
[...]
Recomenda-se a "Ode Triunfal" na voz de Paulo Autran.
11 – Ode Marítima
Sozinho, no cais deserto, a esta manhã de Verão,
Olho pro lado da barra, olho pro Indefinido,
Olho e contenta-me ver,
Pequeno, negro e claro, um paquete entrando.
Vem muito longe, nítido, clássico à sua maneira.
Deixa no ar distante atrás de si a orla vã do seu fumo.
Vem entrando, e a manhã entra com ele, e no rio,
Aqui, acolá, acorda a vida marítima,
Erguem-se velas, avançam rebocadores,
Surgem barcos pequenos detrás dos navios que estão no porto.
Há uma vaga brisa.
Mas a minh'alma está com o que vejo menos.
Com o paquete que entra,
Porque ele está com a Distância, com a Manhã,
Com o sentido marítimo desta Hora,
Com a doçura dolorosa que sobe em mim como uma náusea,
Como um começar a enjoar, mas no espírito.Olho de longe o paquete, com uma grande independência de alma,
E dentro de mim um volante começa a girar, lentamente.Os paquetes que entram de manhã na barra
Trazem aos meus olhos consigo
O mistério alegre e triste de quem chega e parte.
Trazem memórias de cais afastados e doutros momentos
Doutro modo da mesma humanidade noutros pontos.
Todo o atracar, todo o largar de navio,
É — sinto-o em mim como o meu sangue —
Inconscientemente simbólico, terrivelmente
Ameaçador de significações metafísicas
Que perturbam em mim quem eu fui...Ah, todo o cais é uma saudade de pedra!
E quando o navio larga do cais
E se repara de repente que se abriu um espaço
Entre o cais e o navio,
Vem-me, não sei porquê, uma angústia recente,
Uma névoa de sentimentos de tristeza
Que brilha ao sol das minhas angústias relvadas
Como a primeira janela onde a madrugada bate,
E me envolve com uma recordação duma outra pessoa
Que fosse misteriosamente minha.
[...]
12 - Passagem das Horas
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
Yat-lô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô-ô... Ghi — ...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagáscar...
Tempestades em torno ao Guardafui...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta estrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranquila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta saciedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.Não sei se a vida é pouco ou de mais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consanguinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contactos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cómoda e feliz.Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.
[...]
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